Memórias que me constituem



Cresci em uma rua tranquila, onde as crianças se reuniam para brincar durante longos  períodos e, muitas vezes, sem a supervisão dos pais. Brincávamos de queimada, mãe da rua, passa anel, pulávamos corda, andávamos de bicicleta e inventávamos inúmeras  aventuras. Nos machucávamos à beça! Sempre havia um pé torcido, um arranhão ou  um joelho ralado, que temia horrivelmente a hora do banho. 

Apesar das muitas escoriações, uns cuidavam dos outros e, juntos, nos divertíamos,  sofríamos, brigávamos e aprendíamos. Nossos pais não interviam tanto, é claro que ouviam nossas reclamações e resmungos, mas não tomavam a frente para resolver os nossos problemas. E assim, aos poucos, dia após dia, descobríamos o doce e o amargo da vida de uma forma lúdica, prazerosa, com olhos de criança! 

Apesar de estar constantemente na rua, em muitos momentos fui uma criança solitária. Meus irmãos, 7 e 5 anos mais velhos, não brincavam tanto comigo, e eu me recordo de brincar muito sozinha até altas horas da noite. Brincava de boneca, de  modelo, fazia grandes ensaios de dança e tinha espaço para soltar a imaginação. Era bom não ter todo o tempo ocupado por lições e atividades, e também eram ótimos os  momentos de solidão, pois pude descobrir muita coisa que estava guardada dentro de  mim. 

Meus pais sempre me deram espaço para brincar e incentivaram as minhas peraltices, desde que eu arrumasse tudo no final. Com meu pai aprendi muitos jogos: dominó,  jogo da memória, batalha naval, dama, pega vareta entre outros. Com a minha mãe aprendi a fazer cabanas, construir cenários, recortar, pintar, desenhar, colar, fazer  festas, cozinhar, brincar de escritório com todos os tipos de materiais curiosos: furador,  grampeador, máquinas de escrever e clipes! Muitos clipes! Aprendi a viver a infância com doçura. Nunca faltavam materiais e elementos variados, e a criatividade ainda  corre solta entre nós duas. 

Venho de um núcleo familiar ligado à arte, meu pai é ator, minha mãe administrava um teatro e meu tio era um agitador cultural na cidade. Sendo assim, cresci cercada de arte, teatro, música, literatura ... e hoje percebo como as diferentes linguagens foram, e ainda são, importantes na minha constituição enquanto sujeito. Me recordo dos passeios pelo centro da cidade, entrando em igrejinhas, galerias de  arte e descobrindo cantinhos curiosos. Lembro das incontáveis idas à Bienal do Livro e a minha paixão pela poesia, introduzida por leituras de Cecília Meireles. Não posso  deixar de mencionar a alegria em assistir a uma peça de meu pai da coxia do teatro,  matar a curiosidade e descobrir como toda a mágica acontecia. Posso ainda narrar o  dia em que cantava a plenos pulmões Adoniran Barbosa e uma amiga de meus pais  disse: “Como você sabe esta música? Isto não é música de criança!”. E eu respondi, do alto da minha sabedoria e língua comprida de criança que: “Não existe música de  criança, só música!”. 

Na escola as coisas também não eram muito diferentes, eu era uma menina curiosa, interessada demais em tudo que acontecia ... fora da sala de aula. As janelas, corredores e portas eram o foco da minha atenção. Ficar sentada, em silêncio por  horas a fio era um enorme desafio. Ficar ali inerte vendo o mundo passar até hoje me  causa angústia. Eu fugia da sala, inventava doenças e atormentava meus amigos. 


Arranjava qualquer desculpa para dar ao corpo a escapada que a cabeça a muito já fizera. Era chamada de bagunceira, desatenta e muitos outros (des)adjetivos que são  oferecidos aos alunos que não seguem o padrão. Enfim, eu era infernal! Apesar de adorar a escola, eu odiava estudar. As coisas não faziam sentido! Eu não conseguia compreender as matérias e durante a minha vida escolar inteira eu aceitei o meu  destino: eu era mesmo “burra”! 

Contudo minha escola não era só o tormento das matérias incompreendidas, eu tinha  professoras maravilhosas e que fizeram toda a diferença na minha formação. Professora Serrano me fez descobrir o gosto pela literatura, Agatha Christie me deixou  insone muitas noites com seus mistérios. Mais tarde surgiu a professora Marilene, que  além de perpetuar o meu gosto pela leitura, abriu caminho para outras linguagens, quando promovia os encontros literários, com temas diversos, que incorporavam as linguagens expressivas.  

Anos depois do “pesadelo” escolar ter acabado, eu descobriria, cursando Pedagogia a minha verdadeira vocação. Justo na escola, quem diria? A vida tem mesmo caminhos  muito tortos para nos revelar quem realmente somos. 

Uma das primeiras perguntas que ouvi na faculdade de educação foi: “por que você  decidiu cursar Pedagogia”? Respondi que escolhi o curso pois amava crianças, então a professora replicou dizendo que: “só amor não era suficiente”! 

Desde esta conversa já se passaram 15 anos! Durante este período, vivendo este precioso tempo ao  lado dos pequenos, comecei a compreender que amor é essencial à aprendizagem, mas que minhas escolhas, minha visão de mundo, minhas palavras e atitudes devem  demonstrar, além de amor e carinho, principalmente respeito para com os meus  alunos. Respeito às necessidades, aos direitos e também às singularidades de cada um.

Sendo assim, a partir destas pequenas memórias e de um breve relato que traz a consciência muitas peças que fazem parte do meu quebra cabeça, começo a compor o retrato da pessoa e da profissional que sou. E também quero comprartilhar com vocês um pouco de minha trajetória como professora de Educação Infantil!


Comentários

  1. Ahhh a infância... que fase deliciosa!! Momento de se descobrir e de testar todos os limites. Foi nessa jornada doida chamada "Pedagogia" que eu pude descobrir esse ser humano incrível: cheio de planos mirabolantes e dona de uma inteligência invejável. Dona de si e destemida. Que esse seja apenas o início das tagarelices pedagógicas.. pois já estou ansiosa para ouvir as próximas histórias!

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  2. Já estou ansiosa pelo próximo texto!

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  3. Nossa parabéns, me fez lembrar da minha infância a parte das brincadeiras na rua,bons tempos,que venha a próxima publicação uhuu..👏👏

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  4. Que gostoso ler seu texto e me identificar um pouco com essa infância de joelho ralado e brincadeira de rua...
    Eu também amava Agatha Christie e devorava os livros de bolso, bem baratinhos, que comprava na banca quando eu era adolescente.
    Parabéns pelo Blog!!!
    Vou acompanhar com muita admiração.

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  5. Amei!!! Acompanhei a sua infância pelos relatos, tão carinhosos, da sua avó (saudades)!
    O amor é fundamental sim, ele sempre cai bem ❤️
    Beijão e sucesso sempre 🙏🏻

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  6. Lindo ver a profissional que se tornou, nítido a paixão e intimidade que tem com a educação.
    Voe alto nessa linda linda jornada e neste novo projeto. ❤

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  7. Que lindo relato, Bel ! Mergulhei com os olhos abertos e pude ver sua sincera e bela jornada até aqui. Vou te acompanhar por aí e por aqui😘

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